Contos
Clara e Eva
Naquela manhã, ela levantou da cama, o corpo todo dolorido, tomou seu café, como de costume e parou em frente ao espelho. Por um momento, não se reconheceu.
Clara já estava próxima de completar 60 anos. Viúva, agora morava sozinha, pois os filhos já haviam se mudado.
Quando mais jovem, Clara era uma sonhadora, uma moça muito alegre, com muitos planos, queria fazer muitas coisas na vida. Chegou a entrar numa faculdade de Jornalismo, trabalhou em lojas de roupas finas e em escritórios como secretária.
Na época em que se casou, era muito comum ainda que as mulheres parassem de trabalhar e de estudar também, para que pudessem se dedicar exclusivamente ao lar, ao marido e aos filhos.
O marido de Clara, um renomado advogado, quinze anos mais velho que ela, estava muito bem de vida à época no casamento. Não eram ricos, mas moravam bem, com todo o conforto.
Os anos foram passando e Clara foi se acostumando a ser mãe, esposa e dona de casa. O marido havia se envolvido com sócios aventureiros e dilapidado todo o patrimônio da família. Só o que havia sobrado era a casa onde moravam.
Depois da morte do marido, por um ataque cardíaco fulminante, Clara tratou logo de vender a casa e comprou dois apartamentos. Foi morar em um deles e alugou o outro para ter alguma renda e poder sobreviver.
Naquele momento, ela se olhava no espelho e não via mais aquela jovem sonhadora. Ela se sentia completamente solitária, sem planos, sem perspectivas, sem saber o que faria com o restante de sua vida.
Certo dia, Clara foi visitar uma prima que há muito não via. Voltando para casa, já à noite, passou por uma rua cheia de buracos e um dos pneus do carro furou. Logo pensou em ligar para a seguradora, mas o celular havia descarregado e ela não tinha um carregador à disposição.
– Meu Deus, como vou me virar para trocar esse pneu sozinha? pensou
– Quer ajuda, senhora? disse um rapaz que passava
– Ah, sim, por favor, moço! respondeu aliviada
O rapaz era alto, tinha barba e cabelos compridos, usava roupas simples, mas limpas. Clara ficou em dúvida se ele seria um morador de rua. Abriu o porta-malas e lhe mostrou o estepe. Como a rua estava bastante escura, o moço pediu para Clara deixar acesos os faróis do carro.
– Moço, aqui não é perigoso não?
– Não, senhora, essa rua é muito tranquila
Com os faróis acesos, Clara percebeu algo estranho em uma abertura de bueiro logo à frente. Aproximando-se, viu o brilho de dois pequenos olhos, que logo a cumprimentaram com um sonoro “miau”. Estendeu o braço para baixo e uma criaturinha minúscula pulou imediatamente e já foi se aninhando em seu colo.
Ela se virou na direção do carro e falou:
– Olha, moço, um gatinho!
O rapaz, já fechando o porta-malas disse:
– Senhora, creio que seja uma gatinha, já que ela tem três cores.
– E agora, o que eu faço?
– A senhora encontrou, a senhora cuida – disse o rapaz em tom firme e ao mesmo tempo gentil.
– Mas, mas, eu não entendo nada de gatos!
– Uma ótima oportunidade para aprender – disse ele com um sorriso suave
– Então, senhora – ele continuou – seu pneu já está trocado, espero que volte bem para casa
E assim, o jovem rapaz foi subindo a rua e juntou-se a mais dois, aparentemente moradores de rua.
Clara, então, colocou a pequena gatinha dentro do carro, fechou os vidros, deixando só uma fresta e foi embora.
Chegando em casa, sem a menor ideia do que fazer, resolveu pedir ajuda a uma vizinha do terceiro andar, que ela sabia que tinha gatos. A vizinha lhe deu um pouquinho de ração e algumas orientações básicas, recomendando que Clara levasse a gatinha a um veterinário já no dia seguinte.
E foi o que ela fez. Na recepção da clínica, foram logo perguntando:
– Qual o nome do animalzinho?
– Eva – respondeu Clara prontamente
A gatinha Eva tinha cerca de três meses de vida e o veterinário fez um exame clínico e coletou uma amostra de sangue. Clara ouviu muitos esclarecimentos e recomendações do veterinário. Ele explicou que quase todos os gatos daquela cor são fêmeas, devido a uma condição genética. Disse também que a gatinha poderia ter fugido de alguma casa da rua onde fora encontrada ou simplesmente ter sido abandonada ali para morrer.
Clara saiu da clínica com o compromisso de retornar no dia seguinte, mesmo que sem a gatinha, para pegar o resultado do exame de sangue e novas recomendações do veterinário. Por hora, ele apenas havia prescrito uma boa ração de filhote e um suplemento alimentar próprio para reforçar a imunidade dos gatos. Pelo exame clínico, a gatinha parecia estar bem, apenas um pouco desnutrida.
Chegando em casa, Clara deixou a gatinha e saiu novamente em direção à rua onde a tinha encontrado. Foi batendo de porta em porta, perguntando a todos que abriam, se alguém havia perdido uma pequena gata tricolor. Ninguém sabia de nada. Eva agora seria responsabilidade dela, definitivamente.
Naquele mesmo dia, empolgada, já contratou uma empresa para colocar redes de proteção em todas as janelas do apartamento, na varanda e na área de serviço. Eva não teria como fugir, conforme o veterinário havia recomendado. Ligou o notebook e foi logo comprando o que Eva precisaria: brinquedos, caminha, bebedouro e comedouro, acessórios.
O exame de sangue de fato acusou uma leve anemia e Clara foi cuidando com todo o carinho da pequena felina, até que ficasse bem de vez.
Para quem não entendia nada sobre gatos, agora Clara já poderia se orgulhar de ter aprendido muitas coisas, pois estava sempre lendo e se informando a respeito.
Clara se lembrou repentinamente do rapaz que havia trocado o pneu furado e achou graça por ele saber que se tratava de uma fêmea, pela cor. Lembrou também que deveria passar em um borracheiro para mandar consertar o pneu.
– Moça, esse pneu aqui é o estepe mesmo, e não está furado – disse o borracheiro.
Por um instante, Clara se deu conta de que aquela troca de pneu teria sido rápida demais. Mas ela se lembrava perfeitamente do pneu furado, bem vazio mesmo. Ela teria continuado a pensar neste assunto, mas logo seu celular tocou e era sua filha contando as novidades.
Eva era extremamente carinhosa. Gostava de ficar no colo de Clara, ronronando e “amassando pãozinho”, tornando-se uma companheira inseparável. Seus lindos olhos verdes sempre transmitiam um amor incondicional e gratidão eterna.
Clara se perguntava frequentemente: quem teria tido a coragem de abandonar um ser tão frágil à própria sorte? E nunca encontrava uma resposta…
Um novo ânimo começou a surgir na vida de Clara. Depois de muito ler sobre gatos, começou a se interessar por outros assuntos e a ler livros também.
Não se sentindo mais sozinha, Clara conseguiu um trabalho na modalidade home office, fez novos amigos e de vez em quando até viajava. Seus horizontes se expandiram.
No dia do seu aniversário de 60 anos, ela se levantou, se olhou no espelho e se deu conta de que parecia muito mais jovem do que no ano anterior, antes de conhecer Eva, agora uma gata adulta, castrada, saudável e tranquila.
Capa: Photo by Kelly Sikkema on Unsplash
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