Contos
Os Gatos da Rua 13
Era uma noite fria de inverno e Carolina estava sentada no sofá. Com o olhar distante pela janela, via as pessoas andando na rua com seus casacos pesados e guarda-chuvas. Olhou rapidamente ao redor da sala, pegou a bolsa com algumas mudas de roupa e saiu. Trancou a porta e atirou a chave bem longe, com toda a força.
Já no ponto de ônibus, chamou e entrou no primeiro que apareceu. Ela tinha pressa em sair daquele lugar, antes que o marido chegasse em casa.
O trajeto foi longo. No início, teve que ir em pé, pois o ônibus estava lotado de pessoas voltando do trabalho, da escola e de seus compromissos.
Depois de mais de uma hora, finalmente ela conseguiu se sentar. Pretendia descer no ponto final, onde quer que fosse, já que sequer sabia o nome daquela linha.
No caminho foi refletindo o que tinha sido sua vida até aquele dia. O dia em em que resolveu dar um basta.
Filha única de um comerciante e de uma dona de casa, Carolina se casou muito cedo com um homem bem mais velho.
Ela nada sabia da vida, nunca tinha namorado e não pôde continuar os estudos, como era de sua vontade. O pai era extremamente autoritário e a mãe submissa. Acabou se casando com um homem que, a princípio, parecia ser sua salvação, mas que depois se mostrou agressivo e possessivo.
O marido a tratara bem até o dia do casamento. Neste mesmo dia, já na noite de núpcias, não teve paciência com ela. Parecendo um animal selvagem, ele a feriu física e psicologicamente. A partir daquele dia começaram as proibições. Ela não poderia visitar os pais, teria que esquecer antigas amizades e dedicar-se totalmente à vida doméstica. Cozinhar, passar, lavar, limpar a casa e esperar por ele com toda a disposição para servir-lhe o jantar.
Alguns anos se passaram. Os pais de Carolina haviam morrido e ela nem ao menos pôde ir ao enterro. Parentes e amigos não telefonavam mais, pois era sempre o marido que atendia e dava desculpas, sem passar a ligação.
Carolina nunca se conformara com aquela condição. Por diversas vezes havia tentado convencer o marido de que ela poderia trabalhar fora e ser mais independente. A cada vez ele se tornava mais agressivo. No início, as agressões eram verbais. Dizia que ela jamais conseguiria arrumar um emprego, pois nada sabia fazer. Falava mal de sua comida e a chamava de gorda o tempo todo. Passados alguns anos, as agressões deixaram de ser somente verbais e começaram a ser físicas também. Agora ele batia nela.
Depois de ter sido agredida fisicamente por algumas vezes, Carolina decidiu que não mais suportaria aquela vida. Não permitiria que o marido lhe roubasse sua própria identidade, nem que para isso tivesse que viver nas ruas.
Quando ela já estava quase adormecendo, o motorista do ônibus anunciou: “ponto final”.
Carolina desceu, com as pernas meio bambas e começou a andar sem direção. Na bolsa, só alguns trocados para a mistura da semana. Estava ficando tarde, o comércio da região já fechando as portas. Mas ela viu uma padaria ainda aberta e foi tomar um lanche, gastando as últimas moedas.
A sensação de liberdade era maior que o medo naquele momento. O cansaço por andar sem rumo tomava conta de seu corpo. Ela precisava parar em algum lugar. Olhou para o lado direito e viu uma pequena rua sem saída. De um lado um muro bem alto, do outro, um mais alto ainda. Foi entrando devagar e percebeu que ali não havia ninguém. Nenhum morador de rua, ou melhor, nenhum outro morador de rua.
Carolina tirou da pequena mala um cobertor e um casaco grosso que usou como travesseiro. Deitou-se ali mesmo na calçada, já mais para o final da ruazinha, iluminada apenas pelas luzes da avenida principal.
Preocupada e ao mesmo tempo eufórica pelo recomeço de sua vida, e não conseguia dormir. Resolveu então sentar-se e assim viu dois olhos amarelos vindo em sua direção.
Era um gato todo preto. Veio andando devagar, silenciosamente, o olhar fixo. Quando pensou em ficar com medo, o gato chegou e, sem pedir licença, se aninhou em seu colo. Desajeitada, Carolina começou a fazer carinho no gato e ali adormeceu sentada com o bichano no colo.
O dia amanheceu e ela acordou. O pequeno gato preto não estava mais ali e nem ela estava sentada. Em algum momento, sem perceber, ela havia se deitado. Eram seis horas da manhã.
Com a luz do dia, ela conseguiu perceber que o muro do lado direito da pequena rua era do estacionamento de uma igreja. Do lado esquerdo, de um cemitério.
O comércio começou a abrir as portas às oito horas. Carolina foi entrando em cada loja, cada bar, oferendo serviços de faxina.
Apesar do marido tanto criticá-la, até que sabia fazer uma boa limpeza. Mesmo com todo o seu esforço, ela nada conseguiu naquele dia. A noite chegou e Carolina voltou à ruazinha sem saída, sua nova morada.
No meio da madrugada ela acordou. O estômago reclamando alto de fome. O gatinho preto de olhos amarelos estava ali e, desta vez, acompanhado de um amiguinho. Um gatinho preto e branco, que lembrava o Frajola (de Frajola e Piu-Piu). Cada um deitou de um lado dela e dormiram até o dia amanhecer.
Mais um dia se passou e Carolina não arranjou um trabalho, mas ganhou uma marmita do dono de um bar. Chegando à pequena rua, ia devorando a comida quando avistou seus dois amiguinhos saindo por uma fresta do muro do cemitério e vindo em sua direção. Outros dois vinham logo atrás. Um deles era branquinho de orelhinhas pretas, cauda e manchas pretas. O outro era cinza, mas tinha a barriga e as patas brancas. A carinha rechonchuda. Todos se aproximaram e Carolina dividiu a marmita com eles.
Era domingo e Carolina não tinha mais onde entrar a não ser na igreja, que abria para a missa. Neste dia, ela conheceu e conversou com várias pessoas. Descobriu que a pequena rua onde se abrigava ficara conhecida como Rua 13. Moradores antigos da região afirmavam que a rua era mal assombrada, que espíritos vagavam por ali à noite, vindos do cemitério. Por causa disso, nem mesmo os mendigos se arriscavam a passar as noites naquele lugar.
Fazia pouco tempo que o coveiro que tomava conta à noite havia falecido de maneira misteriosa. Seu corpo fora encontrado caído entre duas covas e vários gatos formavam um círculo ao seu redor. Quando as pessoas se aproximaram, os gatos, que pareciam velá-lo, fugiram.
Em sua fé católica, Carolina não se deixou amedrontar pela fama de assombração da Rua 13. Ela não acreditava em espíritos que pudessem vagar por aí. Por isso, continuou se abrigando no mesmo local. Um dia ela fazia uma faxina na casa de uma pessoa, noutro passava roupas e assim foi conseguindo um dinheirinho para se alimentar e aos gatos da rua 13, que a cada dia só aumentavam em quantidade.
Ninguém sabia que ela não tinha uma casa para morar. Tomava banho e lavava sua roupa na casa das patroas. Algumas deixavam que ela levasse restos de comida, que sempre dividia com os gatos.
Carolina já poderia começar a pensar em pagar um quarto de pensão para morar, mas não queria abandonar os gatos da Rua 13, que já totalizavam 17. De todas as cores e tamanhos, alguns eram mestiços com siamês, outros eram tigrados, vários eram pretinhos, com olhos amarelos e verdes também. Uma gatinha escaminha, carinhosamente chamada de Fumacinha, era seu maior xodó. Todos já tinham um nome. Um lindo gato cinza e branco, que parecia recém saído de um conto de fadas, era agora chamado Príncipe. Um outro branco com um bigodinho preto lembrava muito o Hitler, e assim foi chamado, mas só na aparência, já que era muito bonzinho.
Uma vez, Carolina foi surpreendida pelo padre, assim que o dia amanheceu. Ele estava abrindo a igreja quando ouviu miados altos na rua ao lado e foi lá verificar. Era o gatinho branco de orelhinhas pretas, o mais “falante” da turma. O padre estava preocupado com o destino dos gatos que o coveiro falecido costumava alimentar com a sua ajuda. Ao ver Carolina rodeada por eles, não se conteve e as lágrimas começaram a rolar.
“Minha filha”, disse ele. “Então é aqui que você dorme? É assim que gasta o dinheiro do seu trabalho?”
Sem jeito, Carolina confessou que não poderia abandonar aqueles gatos, que ela não sabia de onde vinham, mas que eram seus amigos e companheiros.
O padre então convenceu uma senhora sozinha que frequentava sua igreja a abrigar Carolina em sua casa.
Carolina passou então a trabalhar para esta senhora e se tornou sua amiga. Mesmo assim, todas as noites ela ia ao encontro de seus gatos, levando água e ração, que comprava com seu salário.
Alguns gatinhos ficaram doentes, outros deram cria e Carolina começou a levá-los na veterinária do bairro, onde todos eram tratados, castrados e vacinados. A veterinária incentivou Carolina a entrar para a faculdade e a se tornar veterinária também. Foi o que ela fez.
Dona Clô, a senhora que a abrigara havia falecido e, não tendo herdeiros, deixou a casa para Carolina.
Na noite seguinte ao falecimento de Dona Clô, Carolina voltava a pé para casa, após alimentar os gatos da Rua 13, quando percebeu que eles a seguiam. Ela se via agora na casa com mais de 30 gatos, alguns ainda filhotes.
As pessoas do bairro e até das regiões vizinhas já conheciam a história da Dra Carolina, que se tornara sócia da antiga veterinária, agora aposentada.
Dra Carolina atendia cães e gatos de pessoas carentes em sua clínica, sem nada cobrar. Sua casa agora tinha um grande espaço com muros altos e telas em todas as janelas, portas e até no quintal, de forma que seus gatos não tivessem mais acesso às ruas. Eram todos saudáveis e alegres, viviam bem alimentados, dormiam em caminhas quentinhas e eram rodeados por brinquedos e arranhadores. Câmeras permitiam que Carolina monitorasse tudo o que faziam pelo celular enquanto trabalhava. Coisas dos tempos modernos.
O padre, que era um grande amante dos animais, havia cedido o espaço do estacionamento da igreja, aquele com o muro que dava para a Rua 13, para que Dra Carolina promovesse feirinhas de adoção para os animais da rua.
Naquele bairro e também nos bairros vizinhos, onde um dia descera no ponto final do ônibus uma moça ferida por um marido violento, agora já não existia nenhum gato e nenhum cachorro vivendo nas ruas. Todos já tinham sido encaminhados para lares amorosos, depois de tratados pela grandiosa Dra Carolina.
Este é um conto de ficção.
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